Um grupo internacional de pesquisadores, com participação brasileira, identificou duas mutações genéticas aparentemente responsáveis por 60% dos casos de um raro tipo de linfoma, conhecido como SPTCL (linfoma das células T subcutâneo similar à paniculite, na sigla em inglês).
As alterações ocorrem em um checkpoint – gene codificador de proteínas que modulam o sistema imune – e estão presentes justamente nos casos mais agressivos da doença. A descoberta, publicada na Nature Genetics, liga pela primeira vez a causa de uma doença a alterações em um checkpoint.
Atualmente, a intervenção farmacológica em checkpoints é considerada o maior avanço no tratamento do câncer das últimas décadas. No entanto, a constatação de que uma alteração genética nesse tipo de gene pode causar doença em vez de tratá-la acende um alerta sobre possíveis riscos da modulação desses checkpoints com uso de medicamentos.
O SPTCL é um linfoma do tipo não Hodgkin que, na maioria dos casos, tem uma evolução lenta. Os principais sintomas são manchas na pele similares às causadas pela paniculite (inflamação do tecido subcutâneo) e pelo lúpus, além de febre prolongada e aumento do fígado e do baço. Essa semelhança, inclusive, faz com que a doença por vezes seja erroneamente diagnosticada, adiando o tratamento adequado.
“É a primeira doença descrita em humanos relacionada com a falta de expressão normal de um checkpoint não causada por uma droga, mas por fatores genéticos”, disse Elvis Valera, médico assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRP-USP) e professor da pós-graduação do Programa de Saúde da Criança e do Adolescente da instituição.
Valera é o único pesquisador brasileiro a assinar o estudo, que conta com mais de 40 autores de instituições do Canadá, França, Austrália e Polinésia Francesa. O trabalho foi realizado durante o período em que o pesquisador passou na McGill University, no Canadá, com apoio da Fapesp. A pesquisa foi supervisionada pela professora Nada Jabado.
O checkpoint afetado na doença estudada pelo grupo é o TIM-3 (célula T imunoglobulina mucina 3, na sigla em inglês), um gene modulador da resposta imune. Assim como outros checkpoints, ele sinaliza o que é próprio do organismo e o que é invasor, a fim de determinar os alvos a serem combatidos pelo sistema imune. Quando o checkpoint é desativado, o organismo passa a atacar a si mesmo.
As mutações, descobertas em 16 amostras de DNA de pessoas que tiveram a doença, entre 26 analisadas, ativam o TIM-3 de forma exagerada, desregulando a atividade imune. O estudo mostrou que uma mutação específica, a Y82C, é mais frequente na Ásia e outra, a I97M, nas Américas.
Irmãos
Valera realizou a pesquisa em paralelo à que o levou originalmente à McGill, cujo objetivo foi avaliar biomarcadores em liquor, sangue e urina de crianças com tumor cerebral. Pouco antes de chegar ao Canadá, sua supervisora Jabado, oncologista pediátrica como ele, havia recebido três irmãos de origem asiática. Dois tiveram o SPTCL e o terceiro, não. A pesquisadora então aproveitou a oportunidade para sequenciar o DNA dos três irmãos e dos seus pais, que não manifestaram a doença.
“Isso é o que se chama de um cluster familiar. Como o SPTCL corresponde a menos de 1% dos linfomas não Hodgkin de crianças, foi uma oportunidade única. Depois do sequenciamento, começamos a analisar os genes que poderiam corresponder a um padrão de herança”, explicou Valera.
A partir de uma lista extensa de genes candidatos, os pesquisadores passaram a verificar a função e quais estavam ligados a doenças. O TIM-3 chamou a atenção por estar sabidamente relacionado aos linfócitos T, que têm função no desenvolvimento do sistema imune. Por isso, podia ter ligação com o linfoma.
Jabado então entrou em contato com pesquisadores da França, que criaram um pequeno consórcio de hospitais a fim de captar mais amostras para comparação. Posteriormente, se juntaram ao estudo pesquisadores da Austrália e da Polinésia Francesa, a fim de dar uma representação mais diversa de DNAs – além dos coletados na França e no Canadá.
“Com os 26 DNAs reunidos, eles viram que havia alterações semelhantes em alguns alelos muito conservados entre vários indivíduos. Isso sugeria um efeito fundador, ou seja, algo que vinha de um ancestral comum. Isso ficou bem evidente nos pacientes de origem asiática, como essa primeira família que deu origem ao estudo”, disse Valera.
Em seguida, os pesquisadores notaram outra mutação preponderante na população com origem nas Américas. “Apesar de diferentes, as mutações estavam muito próximas uma da outra na proteína TIM-3. Por isso, imaginamos que o efeito causado por elas seria parecido.”
Pelo menos 60% das amostras tinham uma das duas mutações. Concluiu-se então que eram provavelmente a causa da doença.
“Por serem extremamente raras na população de modo geral e estarem presentes em mais da metade dos casos, sendo que a doença até então não tinha nenhuma causa molecular ou diagnóstico genético conhecidos, concluímos que se tratava de uma mutação germline, ou seja, quem a carrega apresenta risco aumentado de ter a doença”, explicou o pesquisador.
Sabe-se, no entanto, que nem todos que carregam alguma das mutações descritas em TIM-3 necessariamente vão desenvolver o SPTCL. Assim como não portadores da mutação podem também ter a doença por razões ainda desconhecidas.
Imunologia
Para saber o efeito exato das mutações sobre as células T, os pesquisadores usaram células de tumor renal, modelo bastante consolidado em estudos do tipo. As mutações foram transfectadas nas células. Em comparação com as tumorais sem nenhuma alteração genética, as mutadas não deixavam o TIM-3 ser expresso na membrana dos linfócitos T.
“Sem a expressão, não há como controlar a função dessa célula de defesa. O sistema imune fica vulnerável”, disse Valera.
Alterar o TIM-3 com uso de medicamentos para combater o linfoma é uma opção de tratamento. O uso de anticorpos para atacar checkpoints e ativar ainda mais o sistema imune rendeu, em 2018, o prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina para o norte-americano James P. Allison e o japonês Tasuku Honjo.
Outras drogas imunossupressoras de ação anti-inflamatória mais global, a exemplo da ciclosporina que inibe proteínas que servem como freios para o sistema imune, são usadas com bons resultados em alguns linfomas, inclusive o SPTCL, além de melanomas e tumores de cérebro.
No entanto, como agora sabe-se que o SPTCL é decorrente de uma modificação num checkpoint, os pesquisadores alertam que pode haver riscos ao intervir dessa forma no linfoma, e que cautela adicional no emprego desse tipo de terapia faz-se necessário.
“É a primeira vez que uma doença humana é relacionada a um checkpoint. Então temos de levar em conta se alterá-lo não pode aumentar o número de doenças imunológicas, incluindo outros tipos de câncer. A repressão terapêutica desses checkpoints de TIM-3 pode ter consequências adversas, então não dá para extrapolar o tratamento para qualquer tipo de câncer”, disse Valera.
O tratamento mais recomendado para a doença, segundo Valera, segue sendo a imunossupressão. Medicamentos como corticoides e a própria ciclosporina são usados para diminuir a atividade do sistema imune, que até então estava atacando o organismo em vez de protegê-lo.
Em alguns casos, a imunossupressão sozinha consegue devolver o organismo ao seu estado normal. Em outros mais persistentes, há necessidade de quimioterapia. Existem situações, no entanto, em que ocorre a hemofagocitose, quadro em que os macrófagos, células de defesa que estão na medula, começam a fagocitar (“comer”) as células da medula óssea. No estudo, todos os linfomas com as mutações evoluíram para hemofagocitose.
Esse quadro afeta a própria produção de sangue do paciente e pode gerar infecções, sangramentos e anemia. Nesses casos, quando as terapias imunossupressoras padrão falham, é preciso considerar um transplante de medula, com o objetivo de substituir completamente o sistema imune. Com informações da Fapesp.
Fonte: https://www.labnetwork.com.br